Se definirmos religião como o culto de forças sobrenaturais,
temos de observar, de saída, que alguns povos nunca a tiveram. Não há sinal de
religião entre as tribos dos pigmeus africanos; enterravam seus mortos sem
nenhuma cerimônia e não lhes davam mais atenção; nem tinham qualquer
superstição, a crermos nos viajantes que os descrevem. Os anéis dos Camarões só
reconheciam deidades malevolentes, nada fazendo para aplacá-las, por ser
inútil. Os vedas do Ceilão apenas admitiam a possibilidade de deuses e almas
imortais; não lhes ofereciam sacrifícios nem orações. Perguntados sobre Deus, respondiam
como os filósofos modernos: “Está ele nas rochas? Num cupim? Numa árvore? Nós nunca
vimos um deus!” Os índios norte-americanos concebiam um deus, mas não o
adoravam; como Epicuro, consideravam-no muito remoto para preocupar-se com os
negócios da Terra. Um índio abipão rebateu uma metafísica à moda de Confúcio: “Nossos
avós e bisavós estavam acostumados a ver apenas a terra, sempre solícitos em
verificar se os campos tinham bons pastos e boa água para os cavalos. Nunca se
preocuparam com o que pode acontecer nos céus, ou quem era o criador e o
governador das estrelas”. Os esquimós, se perguntados sobre quem fizera o mundo,
respondiam: “Não sabemos”. A esta pergunta: “Quando vê você o sol erguer-se ou
pôr-se, e as árvores crescerem, não pensa em quem os fez?” um zulu respondeu
com simplicidade: “Não, nós vemos isso, mas não podemos dizer nada a respeito;
achamos que apareceram por si mesmos”.
Tais casos são excepcionais, e a velha crença de que a
religião é universal parece-nos substancialmente certa. Para o filósofo
constitui um fato importante da história e da psicologia; fascina-o a
antiguidade e a persistência da fé. Quais as fontes dessa indestrutível piedade
do homem?
Desde que todas as coisas têm alma ou encerram em si deuses
ocultos, os objetos de adoração não tem fim. Caem em seis classes: celestes,
terrestres, sexuais, animais, humanos e divinos. Não podemos saber qual foi o
primeiro. Um dos primeiros foi certamente a Lua. Assim como o nosso folclore
fala do “homem na Lua“, assim também as primitivas lendas concebiam a Lua como
um valente macho que seduzia as mulheres, fazendo-as menstruar. Foi a deidade
favorita das mulheres, que a adoravam como uma protetora. Também era uma medida
de tempo; à Lua cabia o governo da chuva e da neve; até os sapos coaxavam para
a Lua, pedindo chuva.
Não podemos saber quando o Sol substituiu a Lua na adoração
dos homens. Talvez quando a agricultura substituiu a caça e o transito do Sol
determinava as estações de semear e colher.;o calor foi reconhecido como benção
para o solo. A Terra tornou-se deusa fertilizada pelos raios do sol e o homem
passou a adorar o grande astro como o pai de todas as coisas vivas. Destes
simples começos passou o culto do Sol para as fés pagãs da antiguidade; muitos
deuses foram apenas a personificação do Sol. Atenas exilou Anaxágoras por atrever-se
a dizer que o Sol não era um deus e sim uma bola de fogo mais ou menos do
tamanho do Peloponeso. A Idade Média conservou uma relíquia do culto do Sol na
auréola dos santos, e nos nossos dias o imperador do Japão é considerado pelos
seus súbditos como a encarnação do deus Sol. Quer dizer que essa superstição, a
mais velha da todas, ainda subsiste. A civilização é coisa duma pequena
minoria; a grande massa humana dificilmente muda, por mais séculos que passem.
Como o Sol e a Lua, cada estrela continha, ou era, um deus,
e movia-se sob o comando do espírito que a habitava. Sob o cristianismo esses espíritos se tornaram anjos, piloto das
estrelas, por assim dizer. O próprio céu era um grande deus, adorado com devoção
como o proporcionador da chuva. Entre muitos povos primitivos a palavra
correspondente a “deus” era “céu”; entre os lubaris e os dincas, deus
significava chuva. Para os mongóis, o supremo deus era Tengri – céu; na China,
Ti – o céu; na Índia védica, Dyaus pitar – o “pai do céu”; na Grécia, Zeus – o céu;
na Pérsia, Ahura – o “céu azul”; e entre nós mesmos ainda é comum o apelo para “Os
Céus”. O ponto central da maior parte das mitologias antigas estava no fecundo
casamento do céu com a Terra.
Porque a Terra também era deus, com cada um dos seus
aspectos presidido por alguma deidade. As árvores tinham almas como os homens;
sendo crime cortá-las; os índios americanos atribuíam as suas derrotas ao fato
de terem os brancos derrubado as árvores protetoras do Homem Vermelho. Nas
Molucas as árvores em flor eram tratadas como mulheres grávidas; não permitiam
que barulho nenhum,nem fogo,ou o que fosse, lhes perturbasse a quietude; e,
como as mulheres, também podiam abortar –
derrubar as frutas antes do tempo. Em Amboyna nenhum rumor era admitido perto
do arroz cacheado – para que não abortassem em palha. Os antigos gauleses
adoravam as árvores de certas florestas sagradas; e os sacerdotes druidas da
Inglaterra reverenciavam o viscum pendente dos carvalhos – o mesmo que ainda
figura em nosso Natal. A veneração das árvores, fontes, rios e montanhas
constitui a mais velha religião que podemos rastrear na Ásia. Muitas montanhas
eram lugares sagrados, sede dos deuses tonantes. Os terremotos não passavam de
sacudidelas de ombros dos deuses irados; os fijianos atribuíam-nos a movimentos
dos deuses no sono; e os samoanos, quando o solo tremia, agarravam-se ao chão e
imploravam ao deus Mafuie que se aquietasse, que não destruísse o planeta.
Quase por toda a parte era a Terra a Grande Mãe; nossa linguagem, que não passa
do precipitado de primitivas e inconscientes fés, sugere ainda o parentesco
entre matéria e mater – mãe. Isthar e Cibele, Demeter e Ceres,Afrodite, Vénus e
Freia – são comparativamente modernas formas da antiga deusa Terra, cuja
fertilidade constituía benção dos campos; o nascimento e o casamento, a morte e
ressurreição triunfante dessas deusas eram símbolos,ou causas do brotar, do
murchar e secar, e do primaveril retorno da vegetação. Tais deidades revelam
pelo seu sexo a primitiva associação da agricultura com a mulher. Quando a agricultura
se tornou dominante na vida da humanidade, as deusas da vegetação reinaram
supremas. A maior parte dos primitivos deuses eram femininos; talvez fossem substituídos
pelos deuses masculinos quando o patriarcalismo da família começou a dominar.
Extraído de História da Civilização - Primeira parte, Tomo 1 por Will Durant